30 setembro 2009

ESTRANGEIRA DO MEU QUARTO

e a quem mais interessa saber onde vai parar o suor que derramei por tua causa? tenho laços estreitos com o sadomasoquismo mas nem por isso deve-se declarar a posse do que não é teu. sou ateu de nascença e isso faz de mim alguém que não se prende a algo que não se possa provar. sei que estou a mercê dos céticos que se aglomeram em frente aos templos e adoram uma imagem e quase sempre por medo do castigo que, por ventura, possam receber de um deus mau e impiedoso. guardei as últimas lembranças da infância na cama da empregada. já era doméstica, eu selvagem.

29 setembro 2009

O Sorriso de Monalisa

ela sorriu. um riso sério, conformado e cheio de veneno. ela sorriu a tristeza indisfarçada, marcada pelos olhos ternos e recém lavados. e daí que sorrisse? sabia-se impotente ante o marasmo que consumia-lhe os dias. mas ela sorriu. pensou nele e viu-se com ele e deu-se um motivo de vida. nada que vislumbrasse um pé na lua, mas uma ilusão sincera de uma mentira que pudesse dar-se. não havia mentira - sabia. apenas o semblante triste amiúde que a contragosto perseguia. pegou o retrato e saiu cantarolando uma musiquinha bossa nova.

27 setembro 2009

Guerra e Paz


o tártaro decerto havia dito do sangue que escorria das montanhas e formava uma cascata colorida. tão bela, cheia de corações partidos e perfurados. e eu a admirava. embora supeitasse pecado por tamanho despudor de tê-la por diva. e nela via o rosto mais autêntico do ser. o medo do agora. tanta fobia por nada. um pouco de pó um pouco de dias e uma saudade imensa de minha filha.

Medo

O medo, talvez propositalmente sentido, cunhou apenas duas marcas suficientes para que brotassem filetes vermelhos sobre a pele branca e trêmula. A coragem outrora sentida, impulsionada pelo álcool e por idéias confusas, sumiu ao primeiro corte. Os olhos encharcados tentaram discernir alguma figura conhecida que pudesse enxugá-los. Contudo, a única coisa encarada, frente à frente, era a própria carcaça que os alojava. O rosto transfigurado, refletido no retrovisor, não representava mais aquela que o possuía. Não poderia ser pior. Estava à mercê de uma estranha: eu mesma. Se alguém viesse em socorro, acomodando a pobre cabeça doentia sobre seus ombros, dizendo, como numa canção de ninar, "calma, tudo isso há de passar", o confronto, mais uma vez, não se daria. E os monstros, como desde sempre, seriam empurrados com a barriga até a próxima bebedeira. Doce ilusão de desesperado imaginar que, deixando o metal fundido descer goela abaixo, o gozo e a paz instalarão, mesmo que temporariamente, na alma enfraquecida, acalmando à força o demônio dentro de si. Não há calma sob correntes. Eu o futuquei até fazê-lo reagir. Sua liberdade foi esfregada na minha cara. Não sei se no fundo de outros poços há água. No meu, há o vermelho. Estou viva. E três cordas são lançadas para mim: ou mato eu a peste; ou sucumbo a ela; ou jogo cartas, com algum coringa sob as mangas. Somente eu e ela. Sem canções de ninar.

Eu Também Só Queria Dizer

eu só queria dizer que aqui é diferente dos pampas. há, sobretudo, excesso de consumo. de materialismo barato porque é tudo novidade. e eu sou novidade já que vim lá de baixo onde é comum ver essas coisas no lixo. e eu digo mais, Caminha diria que não, mas afirmo com convicção de devoto ferrenho de são tomé (não sei se é esse o nome do santo), que nada há pra se levar daqui.

eu só queria dizer que achei estranho que eles sejam tão iguais aos que assinam decretos e leis e desmembramento de terras que jurei a são patrício (não sei que santo é esse nem pra que serve) que voltaria com um deles só pra mostrar ao presidente do comitê olimpico brasileiro que o sujeito nada mais que Michael Phelps.

e eu só queria dizer que ainda há vagas na construção civil. um dia ainda pego meu diploma de mestre de obras e me mudo de vez pra manaus e seja lá o que são joaquim da barra (não é o santo, é a cidade) venha me dizer, já que sou funcionário público e minha função é preencher formulários de gente que vem do norte.

26 setembro 2009

O Leite é Pra Ser Mamado


tive um segundo a impressão de colono. é que Portugal me deu uma herança ingrata. aquela que me separa da mãe-pátria e faz-me chorar de indignação. porque todo esse gene continua dependente do seu sangue, do seu canto, do seu mar. - quando irá me levar ao teu seio pra mamar uma única vez o teu leite?

tive um segundo a impressão de senzala. é que ainda cabe dentro de mim o escravo que me constrói. por desespero súbito de perder o que nunca tive me mato por um pouco ilusão. porque é certo a questão do auto flagelo que consome o que sobrou do pasto. - quanto do teu leite ainda sustentará minha bancada?

25 setembro 2009

QUEM TEM QUE FAZER ALGO É VOCÊ.

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a cidade está fria, doente. tem sede e engasga na própria saliva. ela fuma seu baseado proibido sem receio. seus tumores criam metástase e condenam ao esquecimento o cheiro do seu nascimento. as artérias corroídas coagulam o sangue bom e liberam toxinas que envenenam os olhos da amada.

ando por uma cidade fantasma. mãos nos bolsos da calça pra disfarçar a timidez de um ser solitário em busca de um urinol. não há nada que me impeça de cometer algum dano ao patrimônio público. só minha consciência. sofro epilepsia ao confrontar uma teoria para sua cura. não há cura para a degeneração.

chuto uma lata de óleo de soja vazia, uma embalagem de leite parmalat e um saco de supermercado cheio de lixo. tudo cai no bueiro. o vento me diz que vem algo aí. pequenas gotículas confirmam. apresso o passo a procura de um lugar mais alto. vem chuva e alagamento. se alguém tiver de morrer, que prepare a própria sepultura.

24 setembro 2009

fora liberdade, eu te odeio!

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a divina comédia é a vida alheia - a minha é trágica - encaixotada em blocos de cimento com vista para o mar. é que quem vê o mar vê o que é de fora. - fora liberdade, eu te odeio! não quero nunca saber do gosto azedo sob tua língua! sai liberdade, me deixe em paz, vai ter com meus inimigos que adoram encoxar-te! e ela se foi...

no princípio foi estranho. afinal, quem tentaria dizer-te do vil navio a partir do porto do Rio? quem dizer-te-ia palavras de ordem sem sentinela a espreitar-te entre doces murmúrios nos ouvidos, praticamente incompreensíveis por outras pátrias? - vai-te liberdade, não vês que não és bem vinda? e ela se foi...

agora eu deveria chorar oceanos, mas não chorei. fui ver a janela enferrujada pela maresia e de lá o imenso Portugal. - meu sangue lusitano por vezes chora* - é que tenho cá dentro de mim a certeza de que ela nunca se foi. esqueço como foi dura a pose de dizer-te pela espada, que morras!!

sei, no entanto, que enquanto vivo espero-te, pois que se sem ti me trai a lembrança do que fui. foda-se liberdade, eu quero mais é ser famoso...
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O DIA AINDA VAI NASCER DESPOIS QUE VOCÊ PARTIR

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o que rola entre nós dois é só entre nós, morre aqui dentro dessas quatro paredes. tudo bem, eu até entendo essa sua vontade louca de sair por aí contando mundo afora isso que aconteceu. mas, não dá. a última pessoa que fez isso está internada num hospital psiquiátrico desde que a desmenti. entenda, tenho uma patente a conservar e um nome a zelar. não é meu querer físico que me exponha dessa maneira. é pura imagem. o que quero é que você pense como eu. o mundo dos outros é o mundo dos outros. eu tenho minha vida familiar e profissional e você tem a sua. não misturemos as coisas. o ofício em primeiro lugar. o povo ainda deve confiar em mim. adeus.
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