19 fevereiro 2010

Bodas

Uma volta. Duas voltas. Pergunto-me se não foi de propósito ter estragado a fechadura tetra, quando insisti para que a chave desse seus giros completos livremente, sob a penumbra, numa dessas noites quando daria o meu reino por uma capa da invisibilidade. Na verdade, não tão somente após as dez badaladas noturnas, bancaria a rainha displicente com o seu povo. Gostaria de ficar invisível durante o dia também. Agora, apenas a fechadura comum apartando-nos do resto do mundo, facilita-me o trabalho feito em carne e ossos evidentes. Sumir, não. Invisível. Ter ainda a presença dentre eles e muitos. Escutar. Embora eu saiba muito bem o que falam. Fala. Ele vai falar o que já sei. Não posso fazer nada. Não quero, na verdade. Antes de desligar o celular, mandei-lhe uma mensagem: estou bem, ponto. Não se preocupe, ponto. Sem bê-jota-esses ou coisa que o valha. Fiz não por amor ou carinho. O send foi apenas uma tentativa de evitar esta cena que se põe, agora, à minha frente. Evitar. Meus olhos daquele que não mais se arrepende dos seus pecados encontram a figura do inquisidor. Burrice, a minha. O que lhe incentivou a perder horas de sono não foi preocupação comigo. Não mais. Ofereci-lhe uma oportunidade de levantar a si próprio, como ser benevolente, justo, honesto, bom pai de família e marido. Ajudei-lhe nisso, reconheça. Sem vilão, não há mocinho. Você é o bom moço. Agradeça-me.
Nada digo. Nada respondo ao suspiro. Tranco a porta. Jogo a bolsa no lugar de costume (de costume). Tiro meus sapatos. Já acho desnecessário ir ao segundo quarto à direita, entrando por aquele corredor. Olhar as crianças dormindo e buscar dentro de mim aquele sentimento pesado capaz de provocar mudanças significativas na vida de tantos, não adianta mais. Se ao menos, sentisse-me culpada por alguma coisa, talvez valeria o martírio. A culpa poderia fazer-me cegar e continuar minha vida de ruminante. Não sinto que estou errada. Desculpem-me, eu, não a mãe de vocês, não está errada.
Outro suspiro. E após este, a fala. Não sei para onde olho. Ou, onde posso desabar meu corpo, enquanto os ouvidos, não a mente, estão ao seu inteiro dispor. É o mínimo.
A casa. As crianças. A vida que muitas gostariam de ter. Privada. Descarga. No fundo, não lhe importa todos esses adereços. Importa a si, somente. Fale. Um homem como você. Seu ego. Assuma. Isso torna o monólogo mais interessante. Dizer-me sobre as coisas em pleno processo de perda, sendo que, no fundo, nunca as tive verdadeiramente, causam-me tédio. Não me importo. Não mais. Difícil de ver?
Sim. Difícil. Talvez eu sempre estive sob o manto.
Um pau maior? Não procurei comparar o seu a algum outro. Sossegue. Não foi essa a causa. Tenho capacidade de me descobrir sozinha, sabia? Talvez não possa crer na minha figura de agora, tão diferente daquela que passava tardes em casa de parentes, forçando-se a rir gentilmente, ou passava horas cheirando cola e verniz, com as mãos ocupadas nas malditas caixinhas, possa lhe fazer sentir mal consigo próprio. As caixas... traidoras! Prometiam-me refúgio e mal me cabiam. Ainda falando sobre você disfarçadamente?
Suspiro eu, colocando os lábios, finalmente, em movimento.
Meus sapatos. Minha bolsa. A chave? Porta aberta. Ela, fechadura. Pouco vejo na penumbra do meu mundo novo, a não ser a sombra de um homem tão perdido quanto eu era. Você se encontra. Procure uma esposa sacramentada.
As crianças? Cuide-as.